A Distópica Direita Marxista

Eu posso considerar que o Estado está longe de ter recuperado dos seus problemas financeiros e recear, por isso, o aumento dos seus encargos. Mas quando o faço, preocupo-me com os seus encargos globais e não apenas com vencimentos.

Eu posso concordar que é injusto haver distinção entre o valor do salário mínimo no sector público e no sector privado. Contudo, obviamente que não ponho as culpas nos funcionários públicos, mas antes no Governo em funções, que toma a decisão. Sobretudo se estamos a falar do orçamento de um ano em que terão lugar duas eleições relevantes.

Mas lendo a notícia “Mais de 600 mil funcionários públicos sem aumentos, salários só sobem para quem ganha menos(in Público, 08/12/2018), percebe-se também que essa distribuição de benefícios é limitada. E não obstante as minhas dúvidas, diria que é até limitada, tendencialmente, aos que mais precisam.

Há uma confusão muito grande quando consideramos que o salário mínimo é o valor de referência para quem oferece emprego.

O salário mínimo é antes uma rede de segurança, para evitar a queda das condições de vida de alguém que trabalha para um nível inaceitável. Não é possível assegurar a coesão social se tivermos uma parte considerável da população no limiar desse nível do aceitável.

Sabemos, no entanto, que não é essa a prática comum e na verdade, o salário mínimo tornou-se num valor perverso, demasiadas vezes o ponto de partida para uma negociação de emprego, ainda que qualificado.

O que não me passa realmente pela cabeça é aproveitar essa diferença que surge entre os sectores público e privado, por resultado da intervenção do Governo em funções, para colocar precisamente os funcionários públicos que recebem menos na posição de serem os responsáveis pelos potenciais problemas futuros que vierem a ocorrer com as nossas contas públicas.

Se recuarmos trinta anos, ao tempo dos governos liderados pelo Prof. Cavaco Silva, sabemos que a aposta, na altura, foi na mão-de-obra barata.

Essa prática perdurou no tempo, o que demonstra que não foi uma opção sensata.

Falhámos também na acumulação de capital produtivo, que permitiria a valorização do factor trabalho e o alcançar dos famosos níveis de competitividade que desejamos, mas que não compreendemos, pondo sempre as culpas desse fracasso nos que se dignam a trabalhar.

Falhámos também numa efectiva e agressiva formação profissional.

O resultado deste conjunto de políticas é que até mesmo um trabalhador qualificado acaba por ser hoje mal pago, uma vez que a estrutura da economia não permite, muitas vezes, que este gere um valor acrescentado que justifique um salário maior.

Pode trabalhar à velocidade que quiser, mas estará sempre a competir com economias mais industrializadas, mais mecanizadas, pelo que será uma guerra perdida. A opção certa seria poupar mais, investir mais em investimento produtivo e industrializar a economia.

Pois a opção seguida, ao longo de décadas, tem sido poupar menos, investir em bens que não se podem exportar (ex: imobiliário) e orientar a economia para o sector terciário.

Durante o tempo dos governos do Prof. Cavaco Silva apontei muitas vezes o dedo às políticas que designava como liberais e cujo retorno me parecia limitado, face às minhas ambições para o meu próprio país.

Fiz o mesmo em relação ao Governo do Dr. Durão Barroso. E antes disso, critiquei o Rendimento Mínimo Garantido do Eng. Guterres, que é o pai do Rendimento Social de Inserção criado mais tarde, precisamente no Governo do Dr. Barroso.

Quanto a mim, a razão dos nem-nem: aquela franja de população que não trabalha, nem estuda, por falta de incentivos.

Pelo contrário, discutimos agora aqui, a propósito do artigo, os outros. Aqueles que trabalham. E é em relação a esses que trabalham que vejo agora surgir vozes, entre os parceiros de coligação do Governo anterior, a criticar não apenas a diferença de salários mínimos (que volto a lembrar que não deveria ser o valor de referência para negociações salariais no acesso a emprego, sobretudo qualificado, mas somente aquilo que o nome diz que é: “salário mínimo”), mas também a agitar a bandeira de que o sector privado, que terá um salário mínimo mais reduzido, estará a financiar os funcionários do sector público com um salário mínimo mais elevado.

Esta exploração de luta de classes, em que operários vs. patrões foi substituída, no caso português, por trabalhadores do sector privado vs. trabalhadores do sector público revela apenas a ideologia que afecta uma parte significativa da mentalidade da nossa direita.
Eles são marxistas e não sabem.

O seu internacionalismo, que deposita mais confiança na gestão dos nossos problemas internos em entidades externas ou supra-nacionais (como por exemplo a Troika, a UE, etc.) revela, mais uma vez, a ideologia que os orienta.
Eles são marxistas e não sabem.

Ao se distraírem com os funcionários públicos mais mal pagos, em vez de se focarem no Governo apoiado por comunistas e bloquistas, evidencia à vista de (quase) todos o carácter relativista das suas convicções, pois muitas vezes nem se assumem como conservadores e muito menos como patriotas.
Eles são marxistas e não sabem.

O alheamento das suas posições em relação à Doutrina Social da Igreja reflecte o ambiente cultural em que foram alimentados.
Eles são marxistas e não sabem….

O normal de uma direita patriótica seria a preocupação com os trabalhadores do sector privado que ficarão para trás, a partir do ano que vem, nesse limiar do que se convencionou considerar aceitável, mas na verdade o foco deles está nos outros, os que descolaram desse limiar.

No seu relato crítico da visita que efectuou à URSS (“Um Mês na URSS”, Edição Livros do Brasil, páginas 49 e 50), o comunista Alberto Moravia escrevia assim: «(…) a multidão nos passeios era uniformemente modesta (…) Esta multidão (…) não se compunha unicamente de operários, como se poderia julgar à primeira vista; era a multidão soviética da qual fazem parte, além dos operários, os intelectuais, os burocratas, os camponeses, os estudantes, os empregados comerciais e por aí fora. Vendo esta multidão (…) compreendia-se que a revolução, ainda antes de ser socialista, havia sido igualitária: todo o cidadão da URSS, a partir de 1917, foi colocado ao nível do operário, e hoje não pode esperar uma melhoria da sua situação se não ao mesmo tempo que o operário».

Quando Marx escreveu “O Capital” caricaturou os patrões e as forças que se convencionou chamar de “direita”. Mas a sua descrição não passava de uma caricatura. O que é curioso no caso português é que o fluxo de gente proveniente de movimentos de esquerda para partidos à sua direita, a partir dos anos 90 (em especial para o PSD) trouxe também a sua mentalidade e ideias. E assim, muitos presumiram que só seriam aceites à direita se encarnassem no papel dessa mesma caricatura feita por Marx.

Tenham por isso muito cuidado com a franja da direita portuguesa que é na verdade uma direita marxista.

Tenham por isso muito cuidado com os pensadores marxistas que perderam o PSD e que agora pensam aproveitar as fragilidades da liderança para recuperar novamente o poder.

Não passam disso mesmo: de uma insólita e distópica direita marxista, que tem de ser denunciada.
Não deve haver outra no mundo.

Gil Cortez Torcato
Membro da Comissão Consultiva da TEM/CDS