A morte a pedido da vítima é inconstitucional

1. Imagine-se que a lei permitia, a quem fosse condenado a prisão máxima de 25 anos, que, em vez de cumprir a pena de prisão, poderia, à luz da sua autonomia da vontade, optar por ser eutanasiado – seria uma lei válida?

Uma tal lei seria, obviamente, inconstitucional:
i) a vida humana é inviolável e, uma vez que a eutanásia corresponde a uma morte a pedido da vítima, a autonomia da vontade é aqui irrelevante;
ii) a norma constitucional que determina que “em caso algum haverá pena de morte” significa que o Estado nunca pode criar um qualquer mecanismo destinado a tirar a vida às pessoas, nem sequer àquelas que cometerem crimes;
iii) e, se o não pode fazer a quem cometeu crimes, por maioria de razão, o Estado nunca pode instituir um sistema que propicie a morte a quem não cometeu qualquer crime.

Ninguém tem o direito de exigir que o Estado lhe dê a morte e o Estado está obrigado, pela Constituição, a nunca criar mecanismos que permitam intencional e deliberadamente provocar a morte de pessoas, nem sequer a pedido destas.

2. Qualquer permissão da eutanásia, traduzindo uma clara adesão a uma “cultura de morte”, permitindo o descartar da vida humana, revela-se contrária à garantia constitucional da inviolabilidade da vida: é que a inviolabilidade da vida humana e da sua dignidade projeta-se também no momento da morte, razão pela qual o Estado se encontra impedido, segundo a Constituição e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a habilitar por lei a privação arbitrária e intencional da vida e a permitir que terceiros colaborem ou pratiquem tais atos.

3. O imperativo constitucional de o Estado construir uma sociedade mais justa e mais solidária não se faz autorizando a eliminação de vidas humanas em situações de sofrimento, antes exige a criação de condições positivas que, tornando acessível a prestação de cuidados paliativos, dignifiquem a vida em caso de doenças incuráveis: a admissibilidade da eutanásia é sempre passível de ser interpretada como via de o Estado reduzir despesas ante situações de onerosidade terapêutica, num claro desvio de poder legislativo, fazendo da morte dos mais fracos um meio de equilíbrio das finanças públicas, motivo pelo qual a eutanásia se revela instrumento de edificação de uma sociedade desumana, mais injusta e menos solidária.

4. A permissão da eutanásia, contrariando padrões éticos internacionais que regem a atividade médica, faz da promoção intencional da morte o objeto de um ato médico, numa intromissão abusiva do Estado em espaço de reserva deontológica, ultrapassando os limites constitucionais de intervenção da lei, acaba por transformar em conduta profissional o que, desde sempre, se tem como crime e eticamente censurável aos médicos:

converter a eutanásia em ato médico, fazendo da lei instrumento criador de novos padrões éticos, mostra um Estado participativo de um espírito totalitário com forte ressonância nazi.

5. No limite, ante um sistema económico assente na coexistência constitucional entre setor público e setor privado, a permissão da eutanásia fará desenvolver uma iniciativa económica privada em torno da morte a pedido da vítima: o comércio da morte, por via de clínicas destinadas a fornecer a eutanásia aos clientes, numa privatização da execução da morte, permitirá fazer da eutanásia um negócio lucrativo, numa solução compatível com uma lógica económica própria de um liberalismo desumano – curiosa e paradoxalmente, tudo patrocinado pela esquerda política parlamentar.

Paulo Otero
Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Jurisconsulto e autor de livros de direito constitucional e administrativo

O autor segue o Acordo Ortográfico de 1990.